“Em nossa inevitável subordinação em relação ao passado, ficamos [portanto] pelo menos livres no sentido de que, condenados sempre a conhecê-lo exclusivamente por meio de [seus] vestígios, conseguimos todavia saber sobre ele muito mais do que ele julgara sensato nos dar a conhecer. [É, pensando bem, uma grande revanche da inteligência sobre o dado]”.
Marc Bloch, com a edição de Jacques Le Goff, em Apologia da História ou o Ofício do Historiador.
Quando ingressei no curso de História, tive contato de imediato com a clássica obra de Marc Bloch: Apologia da História ou o Ofício do Historiador.
Um livro básico para quem deseja se aprofundar na disciplina.
Um livro rico também para compreender que o fazer histórico não pode estar subjugado e encarcerado pelas ideologias.
Um livro para compreender que o historiador, antes de fazer História que o valha, deve conhecer a si mesmo:
“Toda investigação histórica supõe, desde seus primeiros passos, que a busca tenha uma direção. No princípio, é o espírito. Nunca [em nenhuma ciência,] a observação passiva gerou algo fecundo. Supondo, aliás, que ela seja possível. Com efeito, não nos deixemos enganar. Acontece, sem dúvida, de o questionário permanecer puramente instintivo. Entretanto, ele está ali. Sem que o trabalhador tenha consciência disso, seus tópicos lhe são ditados pelas afirmações ou hesitações que suas explicações anteriores inscreveram obscuramente em seu cérebro, através da tradição, do senso comum, isto é, muito frequentemente, dos preconceitos comuns. Nunca se é tão receptivo quanto se acredita. Não há pior conselho a dar a um iniciante do que esperar [assim], numa atitude de aparente submissão, a inspiração do documento. Com isso, mais de uma investigação de boa vontade destinou-se ao fracasso ou à insignificância”.
Marc Bloch em Apologia da História…
A partir dessa obra do grande medievalista (especialista em História Medieval) francês, que produziu sua obra encarcerado pelos nazistas, longe de sua biblioteca, apenas com o que já tinha guardado em sua mente e que ficou inconclusa, interrompida pela sua condenação e fuzilamento, aprendemos que as fontes históricas não existem por si e, ao mesmo tempo, que tudo pode se tornar fonte histórica, qualquer vestígio do passado — cartas, diários, pinturas, certidões de casamento… — pode se tornar uma fonte histórica a partir das questões que o historiador faça a esse vestígio.
Assim, não há maior alegria para um historiador do que quando encontra um documento, aparentemente sem importância, com informações e respostas valiosas às suas questões.
Isso aconteceu quando tive contato com o primeiro livro de Certidões de Casamento da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro.
Protestantes, no Brasil imperial, não tinham nenhuma segurança jurídica em relação aos seus casamentos até a década de 1860.
Todas as questões relativas à vida civil dos brasileiros no período monárquico eram regidas pela Igreja Católica, devido ao regime de padroado que a tornava instituição oficial do Estado.
Diante dessa realidade, não havia nenhum obstáculo para o casamento entre católico, a não ser o pagamento dos emolumentos para a realização das cerimônias, pagas ao pároco celebrante.
Porém, havia todos os obstáculos possíveis para a realização de casamentos entre protestantes e, principalmente, entre protestantes e católicos, isto é, os casamentos mistos.
Nessa condição, para que o casamento misto fosse legitimado, era necessário haver a concessão dada pelo papa chamada de dispensa de Cultus Disparitas. Isso mesmo, somente o papa poderia conceder tal dispensa.
No Brasil, contudo, ao longo do século XIX, essa exigência foi flexibilizada pela concessão de um Breve Pontifício, conhecido como Breve dos 25 anos, que dava autorização aos bispos para concederem as dispensas.
A primeira concessão ocorreu em 1796, no contexto da Revolução Francesa. Porém, essa concessão havia sido renovada em 1822, devido às turbulências nos territórios americanos causadas pelos conflitos independentistas. Por fim, uma nova concessão foi dada em 1848, depois de muita insistência do governo brasileiro.
Assim, ao longo da década de 1850, diversos projetos foram apresentados para regularizar os casamentos de protestantes e os casamentos mistos, tanto por liberais, como o projeto de José Thomaz Nabuco de Araújo, em 1855, quanto por conservadores, como o projeto do barão de Cotegipe, em 1847.
O projeto de Nabuco de Araújo venceu e se tornou o Decreto nº 1.144, de 11 de setembro de 1861, regulamentada pelo Decreto nº 3.069, de 17 de abril de 1863.
Somente a partir desses decretos os casamentos entre protestantes passava a ter legitimidade diante do Estado. Lembre-se que a primeira comunidade protestante é estabelecida no Brasil no ano de 1824, os luteranos que fundam a colônia de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro.
Porém, esses regulamentos não resolveram a questão dos casamentos mistos, que só será resolvida após a instauração da República.
Porque essa questão era tão importante, incluindo a questão dos casamentos mistos?
A questão era a proteção da propriedade. Duvido um pouco da questão romântica…
Muitos imigrantes chegavam ao Brasil esperando ter a oportunidade de possuírem um pequeno pedaço de terra. Por vezes, um casamento com a filha de um proprietário resultava num dote muito visado.
Além disso, por diversas razões, esse casamento poderia ser questionado por um pároco local e ser simplesmente anulado. Acontecia bastante…
Para o historiador é uma alegria, apesar de tudo o que nossos personagens sofreram, investigar a riqueza de informações que podem ser encontradas nas Certidões de Casamento produzidas após os decretos.
Nelas podem ser encontradas informações valiosas sobre o perfil dos primeiros convertidos ao protestantismo no Brasil.
Por exemplo, nesta certidão de um casamento realizado pela Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, de 21 de dezembro de 1871, temos informações sobre a profissão do noivo, Manoel Coelho de Moura: alfaiate. No documento também temos a informação de tanto o noivo quanto a noiva, Maria Roza Teixeira, são portugueses.
Sobre as profissões aparecem sapateiros, ferreiros, mecânicos, etc. São profissões associadas aos estratos econômicos mais baixos da sociedade imperial.
Sobre as nacionalidades, aparecem muitos portugueses. Disso, pode surgir o interesse da presença portuguesa na constituição das igrejas protestantes brasileiras.
Disso, pode surgir o interesse da presença portuguesa na constituição das igrejas protestantes brasileiras.
Quais outras questões podem surgir de um documento como esse?
Deixe a sua imaginação de historiador viajar por esse documento…
Por Pedro Henrique Medeiros, historiador.
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